A REVELA��O � ou A Sina do Competente
Esta � est�ria de um sujeito competente, de seu pequeno furo e de sua grande revela��o.
ATEN��O: Este � um texto baseado em fatos absurdamente reais. Os nomes foram trocados, mas as pessoas e situa��es podem ser encopntradas em qualquer reparti��o p�blica de nosso pa�s e em algumas empresas privadas, todos os dias.
- Putz! Como isso pode ter acontecido?!!
Gomes � o funcion�rio mais que perfeito. N�o aquele tipo de funcion�rio padr�o: chato, puxa saco dos superiores, man� controlador dos iguais, que critica os colegas. Sujeito correto, respons�vel, humano, �s vezes chega atrasado, xinga o chefe, aceita brincadeiras numa boa. � um sujeito preocupado com a organiza��o do trabalho, camarada de todos, operoso, que gosta de fazer as coisas bem feitas. Uma pessoa normal, com um car�ter acima da m�dia.
O problema � que, naquele dia, apareceu um furo! O furo do Gomes. Foi uma data comemorativa para o urubus de tocaia da reparti��o:
-
Gomes tinha dado o furo! Olha o furo do Gomes! � diziam os colegas, jocosamente.
O desespero do pobre Gomes era ris�vel: na sua pequena mesa entulhada de pap�is, ele passava as m�os pela cabe�a, repetidas vezes, o cabelo desgrenhado, os �culos desalinhados, suando frio, o olhar perdido.
- Putz! - era �nica coisa que repetia, baixinho, como que dizendo para si mesmo, enquanto mentalizava todo esfor�o para melhorar as condi��es de trabalho, provar que suas id�ias trariam benef�cios a todos os colegas, otimizar os resultados.
Aquele ano de trabalho fora estafante. Faltava espa�o, faltava material, o equipamento de trabalho era da pior qualidade, faltava estrutura, faltava organiza��o, faltava gente, faltava at� um chefe. Este, ali�s, existia fisicamente, mas ele ou ningu�m era a mesma coisa.
Geraldo, o Gestor Geral, era uma pessoa de bom cora��o, com a mente fraca, quase um incompetente. Era um caso a ser estudado: como chegou �quela posi��o de chefia? � Coisas do Servi�o P�blico � O sujeito era um cuca fresca, doente da cabe�a, em tratamento, tomando rem�dio. Todos o chamavam de Maluco Beleza, n�o ligava para nada:
- Geraldo, o computador est� com defeito.
- Legal. Manda consertar e fica na tua, malandro.
- Geraldo, t� faltando material.
- Quem mandou voc� gastar tudo.
- Geraldo, faz uma requisi��o de material e para consertar o computador.
Aproveita e pede para mandarem pessoal, precisamos de mais funcion�rios.
- T� pensando que � assim?!!!! Isso n�o � fun��o minha, se quer consertar o computador vai ao Setor de Inform�tica, material � com o Setor de suprimentos. N�o adianta pedir mais funcion�rio que o Recursos Humanos n�o manda.
- Geraldo, isso faz parte das usa atribui��es. Toma uma atitude.
- Que fun��o minha, o que, ot�rio?!!!! Tem um provimento a� que diz que isso � tudo deleg�vel. Gestor Geral � pago para n�o fazer nada, to cansado de tanto trabalhar, s�o quinze anos de Servi�o P�blico. Fica na tua, malandro.
Um ano aturando isso, mas a luta valera a pena... at� ent�o. Gomes, ganhara o respeito do Chefe da Reparti��o, Sr. Ant�o.
Ant�o, � um senhor respeit�vel, mas que n�o se envolve diretamente com os problemas do servi�o... s� quando o cheiro de �podre� chega em seu gabinete. Quando isso acontece, o Sr. Ant�o ou convoca uma reuni�o geral para ouvir todos os funcion�rios, ou, ent�o, ouve a opini�o de cada um em separado � sempre muito am�vel, democr�tico � e decide, Imperialmente, por uma �solu��o� que ningu�m havia proposto e que n�o atende �s necessidades do servi�o, mas que:
- � o que pode ser feito, no momento, senhores. Ficamos assim.
O Sr. Ant�o, n�o respeita nem gosta do Geraldo, mas por uma dessas situa��es que s� servi�o p�blico pode criar, o cargo de Gerente Geral n�o � subordinado ao Chefe de Reparti��o. Por isso, dizia sempre o Geraldo:
- Vai ter que me engolir!
Os colegas em sua maioria eram bons sujeitos, mas sempre tem a ma�� podre no cesto. Alicinha � a expert em fazer nada: campe� de desentortar clipe de papel e testar el�stico. Interrompe seu �servi�o� a cada vinte minutos para dar uma �fumadinha que ningu�m � de ferro�. Manipula os funcion�rios mais humildes para fazer seu servi�o, enrola os colegas com sua l�bia e, pior, tira licen�a m�dica de dois em dois meses:
- Bati com o carro. Machuquei o tend�o do bra�o direito e o m�dico mandou repousar por 30 dias.
- Sabe o que �, estou com problema de press�o alta. O m�dico deu licen�a de 10 dias.
- Minha tia, que cuidou de mim a vida inteira est� pela hora da morte, posso ficar tr�s dias no hospital ?!!
Mas a Alicinha foi embora... algu�m percebeu que ela fazia muito bem o que sabia fazer: Nada! Ent�o, sob a apar�ncia de uma puni��o ela foi transferida para outra se��o, onde, pasmem, o Chefe era seu amigo do peito � dos peitos como insinuavam alguns. L� , ela e mais dois ou tr�s especialistas fazem nada o dia inteiro. Recebia rasgados elogios na ficha funcional, � funcion�ria querida por seus superiores.
O Cavalcant era �terr�vel�. Sujeito extrovertido, extremamente simp�tico, mas n�o tinha nenhuma considera��o pela fun��o que exercia, pelas pessoas que dependiam do seu trabalho, nem por seus colegas. Lutava artes marciais, era marombista e intimidava os colegas com isso. Chama o Gomes de �Shock de Monstro� (sujeito legal), respeito-o, mas acha ele um babaca por trabalhar. O problema do Cavalcant era que n�o tinha hor�rio, nem zelo com seu trabalho.
- Porra, Cavalcant! Duas da tarde! Cara, assim n�o d� pra segurar sua onda.
- Qual � o problema?!!! � falava estufando o peito e cruzando os bra�os. � Eu fa�o o meu servi�o, n�o importa a hora em que chego e saio. Fa�o e est� feito, n�o enche o meu saco.
- Cavalcant, seu trabalho � um lixo. Documentos fora de pauta, pastas e arquivos sujos, amassados e at� rasgados.
- Ce ta reclamando de qu�?! Isso aqui � um chiqueiro. � um Chiqueiro, mas um chiqueirinho gostoso, por que a gente trabalha mas se diverte. Se as condi��es fossem melhores, a qualidade do servi�o seria melhor tamb�m. Enquanto isso n�o acontece, eu jogo lixo no ch�o, chego tarde e n�o vou me matar por essa �M�, quero � o dinheiro no bolso no final do m�s.
Chiqueirinho Gostoso! Assim � que todos chamam aquela reparti��o. O Chiqueirinho Gostoso tem um Ar Imundicionado, de t�o sujo que � o filtro e de t�o velho que � o aparelho. O computador tem �uma manivela de inicializa��o� e a v�lvula do monitor tem que aquecer para funcionar. Sem falar no Nojeiro, ao lado da sala, exalando aquele odor de mict�rio entupido.
Cavalcant era terr�vel, mas caiu nas gra�as do Gestor Geral, a quem dava carona todos os dias. O Sr. Ant�o tamb�m gostava dele:
-
Muito inteligente e espirituoso � dizia �
vai longe.
Outros colegas, como em qualquer ambiente de trabalho, eram invejosos, ou medrosos, ou bons, ou eficientes, outros malandros, ou simp�ticos, ou, ou, ou... nada que merecesse destaque.
Mas o Gomes... quanta infelicidade! O competente Gomes, o s�rio Gomes, o eficiente Gomes, o operoso Gomes... O Gomes tinha dado um furo e, por isso, transformou-se, no Gomes �vaciloso�, no Gomes desatento, no Gomes inexperiente, no Gomes afobado. Sua fama, at� o final do dia j� era interdepartamental.
Gomes, ou seu furo, j� era objeto de chacota entre os colegas. O Chefe do Chefe do Chefe j� sabia do Gomes e do �Seu Furo�.
- Isto n�o pode ficar assim! � um absurdo! � bradava � A imagem da reparti��o n�o pode ser maculada por uma macha provocada por um insignificante funcion�rio de quinta categoria. Como pode ter sido admitido nos quadros?!!! Algo tem que ser feito. A puni��o tem de ser exemplar. O que pensar�o os representantes de outras reparti��es! E a popula��o atendida se revoltar� se nada fizermos. N�o podemos premiar a incompet�ncia deste funcion�rio. Logo naquele setor que funcionava melhor que os outros. O melhor tem que ser sempre o melhor, exemplar mesmo. Para continuar sendo o melhor, temos que expulsar de l� os desidiosos. Transfiram o Gomes para o pior setor de servi�o, junto com os demais incompetentes.
Quando o telefone tocou na reparti��o, no fim do expediente, Gomes sentiu a dor de cem chibatas. A imagem era do boi no abate: Olhar emba�ado, m�sculos tensos, a espera do inevit�vel, a inaceit�vel certeza do destino cruel. Nas poucas palavras de Geraldo ao telefone, Gomes percebeu que estava sendo mandado para os �Quintos dos Infernos�, o pior setor de toda a reparti��o, onde �habitavam� e �trabalhavam� os nefastos, os indesej�veis, os varridos para debaixo do tapete, os incompetentes. Era o fim. Quem ia para o Quintos dos Infernos desaparecia, nunca mais se ouvia falar na pessoa.
Gomes, firme nas suas convic��es, foi para o �Quintos dos Infernos� com a impress�o de que n�o vale a pena ser competente, destacar-se por um bom servi�o prestado. Ora, o menor dos furos toma a maior dimens�o. No meio de tanto descaso, incompet�ncia, falta de condi��es, s� com muito esfor�o se percebe o bom trabalho, mas para destru�-lo basta um pequeno descuido, que a ningu�m prejudicou.
Para surpresa de Gomes o �Quinto dos Infernos� era o Para�so.
As condi��es da instala��o e os equipamentos n�o eram melhores. No entanto, ap�s tr�s meses, Gomes percebeu que por alguma estranha coincid�ncia, l�, todos trabalhavam e tinham a consci�ncia da import�ncia de seu servi�o. Isso fazia com todos tivessem uma carga menor de trabalho, sendo o resultado de melhor qualidade. Os �indesej�veis incompetentes� eram a melhor equipe, esquecida nos quintos dos infernos. O problema era que ningu�m nunca sa�ra de l�, ningu�m obtinha promo��o ou era removido, o Quinto dos Infernos era o fim do mundo da Idade M�dia: um pa�o a mais levaria a uma queda no NADA absoluto.
Gomes teve ent�o uma revela��o, um desses momentos sublimes em que se entende o sentido, sen�o da vida, pelo menos das prova��es a que somos submetidos. N�o era uma revela��o m�stica. Era de uma l�gica profunda, um paradoxo arraigado na ess�ncia daquele �desservi�o p�blico�. Naquela noite, Gomes, depois de muito tempo, dormiu em paz, tranq�ilo, o verdadeiro sono dos justos. Afinal, seu furo era o de algu�m que incomodava por que obrigava, de certo modo, a que todos realizassem o servi�o com o mesmo zelo, dedica��o e compet�ncia... e isso implica em esfor�o e trabalho.
O Gomes sabia, agora, que o Quinto dos Infernos, era o lugar em que todos se igualavam, n�o havia diferen�as, injusti�as, for�as ocultas, melhor ou pior. O Quinto dos Infernos era o sonho de todo anarquista, socialista, democrata, comunista, crist�o, judeu, mul�umano, budista, hindu, ateu, etc... Ironicamente, por estarem todos na mesma situa��o, sem chance de sair dela, eram todos iguais e todos, de alguma forma, eram bons.