25.9.01

Saiu no UOL...


As novas rela��es internacionais
RICARDO SEITENFUS

O gesto extremo de pessoas ordin�rias despertou bruscamente o mundo para a sua pr�pria estreiteza. Antes que os desdobramentos do ataque de 11 de setembro venham a marcar com ainda mais vigor as rela��es internacionais, j� s�o vis�veis alguns pontos de ruptura. Eles podem resultar numa evolu��o positiva, refor�ando a coopera��o internacional, ou negativa, com o avan�o do nacionalismo, do manique�smo e da xenofobia.
Em primeiro lugar, a id�ia de que a hist�ria havia acabado mostrou-se absurda: ainda h� espa�o para o inesperado, o curso do mundo n�o est� definido. O determinismo com que todos os fatos eram apresentados deu lugar � incerteza. Nada � inevit�vel, a come�ar pelo atual modelo de globaliza��o. Sendo assim, nenhuma submiss�o � obrigat�ria.
Num mundo em muta��o, os gigantes pagam o pre�o de sua pr�pria for�a. N�o se trata de uma interpreta��o positiva do terrorismo, mas da simples constata��o de que h� elementos outros em jogo al�m dos fatores econ�micos e que o determinismo �, antes, um argumento a sustentar o conformismo.
Em segundo lugar, a pauta de governo da administra��o Bush foi atingida em sua ess�ncia. O presidente americano acreditou que poderia conduzir uma pol�tica externa � la carte, agindo no exterior somente em �ltimo caso, com custo m�nimo poss�vel, guiado apenas por seus interesses internos.
Entre os exemplos dessa decis�o pol�tica est� a recusa em subscrever importantes conven��es internacionais, como o Protocolo de Kyoto. Mas, sobretudo, h� o incondicional apoio a uma das partes no grav�ssimo conflito no Oriente M�dio. Desabou com as torres g�meas a id�ia de que "a paz � a guerra alhures". Uma eventual "paz dos cemit�rios" entre israelenses e palestinos pode significar a guerra no Ocidente. O estilha�o atroz de um conflito criado pela comunidade internacional nos anos 40, que ela desde ent�o se recusa a enfrentar, talha o horizonte do novo s�culo.
Mais do que uma prova de que nenhum lugar do planeta � intoc�vel, j� que a pr�pria superpot�ncia foi atacada em seu cora��o financeiro e militar, o 11 de setembro � um desesperado apelo para que Washington seja mais do que simples guardi� do status quo.
Ora, Bush sai hoje da concha e volta-se para a comunidade internacional, dirigindo-se inclusive a Cuba, com in�dita consci�ncia de pertencer a um mundo interligado e dependente. Surge ent�o a terceira quest�o: sobre que bases ser� constru�da essa nova consci�ncia coletiva internacional?
� esp�ria a tentativa de infantiliza��o do mundo por meio da id�ia de guerra do bem contra o mal. � at� compreens�vel que o pitoresco Bush apresente o mundo como um bom faroeste. Mas os EUA j� colaboraram com regimes pol�ticos perversos, lan�aram a bomba at�mica e aceitam de bom grado a mis�ria que seu sistema econ�mico provoca na maior parte do mundo. Nesse "casting", o papel de mocinho seria inveross�mil.


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� esp�ria a tentativa de infantiliza��o do mundo por meio da id�ia de guerra do bem contra o mal
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Por outro lado, a vis�o do bandido � fluida, aumentando o risco de atirar no pr�prio p�. Embora Osama bin Laden seja inimigo declarado dos EUA, estes encontram dificuldades para obter provas cabais de sua participa��o no ataque de 11 de setembro. Sua fortuna pessoal, em termos de custo de opera��es militares, � insignificante. �bvio que o financiamento prov�m de outras fontes e, mais importante, que h� grupos aut�nomos decididos a agir.
E aqui surge a quarta quest�o: como pessoas comuns, t�o instru�das quanto a elite ocidental, que fizeram seus estudos na Europa e desfrutaram do "american way of life", tornam-se capazes de tais atos de barb�rie? O terrorista diab�lico, demente, ignorante e insoci�vel -como o pintava o imagin�rio ocidental- pode ser, na verdade, um homem gentil, inteligente e socialmente adaptado, que elabora com lucidez e precis�o impressionantes o golpe que vai ceifar a vida de milhares de inocentes, que planeja no seu cotidiano ordin�rio o gesto que marcar� a hist�ria.
Os terroristas, ao cometerem um ato de inomin�vel covardia, foram movidos, paradoxalmente, por uma coragem impressionante, que, originando-se no fanatismo, � executada por meio do conhecimento e, portanto, da ci�ncia. Talvez seja essa a mais terrivelmente inc�moda constata��o do epis�dio, pois mostra o quanto os servi�os de intelig�ncia s�o -e continuar�o sendo- incapazes de combater o terrorismo suicida. A �nica intelig�ncia que pode evitar a barb�rie nada tem a ver com os c�nones que orientam a CIA e o FBI.
O desafio � maior. Mais do que n�o obter a paz internacional, pa�ses como os EUA contribuem, em suas a��es e omiss�es, para que a guerra e a injusti�a perdurem em muitos rinc�es do mundo, conforme seus interesses estrat�gicos. Patente exemplo est� no apoio concedido pelos americanos aos pr�prios talebans na luta contra os sovi�ticos.
Ora, n�o � a guerra ou o ataque ao mundo isl�mico que coibir� essa f�ria. Uma rea��o militar indiscriminada do Ocidente s� pode potencializ�-la assustadoramente. De que adianta bombardear o Afeganist�o?
A �nica forma de combater os terroristas n�o tem apelo eleitoral nem resultado r�pido. � eleger a guerra, a mis�ria e a intoler�ncia como inimigos.
A predomin�ncia dos interesses econ�micos que caracteriza a nossa �poca e a submiss�o do espa�o pol�tico coletivo ao imp�rio financeiro traz um bem-estar restrito a poucos, falso e prec�rio. Somente o tratamento coletivo dos problemas da humanidade, com a predomin�ncia dos interesses do homem -e n�o de alguns homens-, construindo o imp�rio da solidariedade e do direito, pode opor-se �s barb�ries da nossa �poca -o terrorismo entre elas.




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Ricardo Ant�nio Silva Seitenfus, 53, doutor em rela��es internacionais pelo Instituto Universit�rio de Altos Estudos Internacionais (Genebra), � professor titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e professor convidado do Instituto de Altos Estudos da Am�rica Latina (Universidade Paris 3).